Monday, November 07, 2005

País dos bregas

PAÍS DOS BREGAS




POEMA PARA A IDADE DE CRISTO

Não desviarei os raios da roda-madrugada tão pouco alada.
Não desistirei do crispado desejo de ser amado,

desejo de amanhecer cru na relva petrificada:
a carne e a pedra, juntas, a suscitar incruento pó de estrelas auto-motivas,
depois da longa noite na livraria, onde um poeta autografava seu livro,
distribuindo sorrisos atados ao copo de whisky e frases emplumadas
ao som de cornetas supra-originais
e o vinho branco recendendo a óleo de soja
e os blasers de indisfarçada poeira, afilados na interminável
linha de mãos e apertos disputados...
A carne... a carne e o mar... o mar distante não desistirei,
embora os remos possam decepar-me a cabeça e o nojo da coragem...
embora os olhos possam secar ao sol de sal das recordações
e os peixes devorar a carne rija e orgulhosa do seu destino.

Não, não morrerei como Flebas, nem recordarão que fui forte e belo
como tu, nem virá o musgo selar os meus lábios e o diálogo
com minha amiga de sepulcro. Não, não serei arrastado às ruas pelos rebeldes
e baleado pelas costas, não me internarão no sanatório onde me encontrariam
agarrado ao meu par de sapatos e circundado por ratos.
Não poderão falar sequer da minha sexualidade tão banal, não
venderão cem mil exemplares da minha autobiografia,
nem desejará minha hipocrisia alimentar hipocrisias.

A madrugada que roda e os raios, o desejo de ser amado, desejo
de amanhecer na carne junto à pedra fuliginosa da calçada
e roçar os cabelos nas placas de concreto e os lábios nas manchas de óleo diesel
e ter os olhos estúpidos como os dos cães e o cheiro do lixo por recolher
e ser diminuto e desconhecido e quiçá lembrado num segundo fulminante
por uma mulher que já não coa o café da esperança nem traga
a fumaça da minha ansiedade...

Não. Não desviarei a rota da roda, não comoverei o desejo a fim de que se eleve,
não amaldiçoarei a carne nem o concreto, não refugarei o sentimento de viajar na salsugem longe do mar,
não distribuirei sorrisos como o feliz poeta da noite anterior
nem porei graça de gesto feminino na oferenda de minhas frases.
Não. Não poderás achar-me gracioso e não te farei concessões...

Mas te pago uma cerveja,
desde que tomes apenas a metade,
e não te falarei dos trinta e três anos que se passaram...
Lê... lê o poema, bebe a cerveja...
Continuarei ímpio, comum e cristão na cruz imaginária desse dia.


UM BURRO

escoiceia São Francisco
ainda assim vai para o céu
transformado em pégaso

não carrega Lady Godiva
não está no páreo do hipódromo
aparece nos sonhos das mulheres normais

pequeno demais para Aníbal, o Cartaginês,
não foi lembrado por Ricardo III ao fim do último ato
carregou Cristo e Lampião




SENTIMENTAL VIAJOR

Um viajor lembra o que passou,
lembra por que passou.
Por isso pode agora chegar-se ao espelho e fitar
sem espanto, sem dor, as rugas em torno dos olhos ---
pode fechá-los para ouvir o coração exausto na paz.
E passar de paz pelos homens, viajeiros de calçadas,
tomar o coletivo de um trópico opulento de espera,
deixar o rosto ficar de frente para todos os rostos
da tribo e ser da tribo,
mesmo como prisioneiro de uma colônia
(dádiva de um tempo em que se vai a lugar nenhum).
Espaços e tempos vertidos a todos os espaços e tempos
e estranhamente a colônia brilha e ferve como se fora outro lugar,
e no entanto ela é aqui, centro de nossos sonhos,
centro das nossas ilusões... e até mesmo do nosso amor...
prisioneiro amor.
Sentimental viajor, senta à varanda de seus antepassados
como no levadiço de antiga nau,
procurando palavras e sentimentos
entre girassóis e folhas de bananeira,
e balança a cadeira que é de balanço
e pensa com os pensamentos que são palavras:
e tudo o que pode dizer é um Boa-Tarde aos homens
que passam carregados pelo tempo viajante,
enquanto uma aeronave cruza o céu avermelhado do sol que morre.
Fita-o silencioso, até que esvaneça no sem-fim.
Sabe que o poder não o acompanha,
já sabe onde reside a dor e prefere desistir a arrancar algo pela força,
mas sorri quando vê o girassol todo voltado para o Oeste
e a bananeira em sombras, sempre humilde e frondosa,
como uma deusa que nasce da terra e na terra há de perecer para iluminar.



ÚLTIMA TRADUÇÃO DE HOMERO

Doce é o lar,
Quando surge aos olhos dos peregrinos,
a quem, sobre a terra Satã desfigurou
a bela e altiva tez, sob os golpes do tempo
e dos sonhos do poder.

FIM DO PÉRIPLO

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