Monday, November 07, 2005

Inscrição

PRÓLOGO VIAJOR

o corpo do navio
a vela, a quilha, a milha
e o astro condutor de um rastro

o corpo do navio
a face da água, o frio, o labirinto
absinto ou beladona?
despregada bujarrona
e os membros içados do desejo

os portos, os mortos, lívidos trajetos
mensagens secretas e iconúbeis parábolas
a bússola das palavras:
a nave, o destino, a dor
o girassol que ainda é flor
o amor

o coração e os olhos do viajor




DEDICATÓRIA

De todos os périplos, bem ou mal sucedidos,
com paz ou terror na alma,
reverenciemos o derradeiro.
A Juvenal, que atravessou o mar
que conduz ao duradouro país.


INSCRIÇÃO

“Doce é a terra,
quando surge aos olhos dos náufragos,
a quem, sobre as ondas Posídon desmantelou
a bem construída nau, sob os golpes dos ventos
e das vagas encapeladas.”
HOMERO - Odisséia, XXIII, 210.

País de si-mesmo

PAÍS DE SI-MESMO


ATHENA, PÁLIDA DEUSA

Athena, pálida deusa,
recusei-te os bronzes d‘armadura e cândidos olhos
pela idéia de Ulisses, ó fundador amoroso e familiar,
que pela família navegou desde a desgraçada Tróia
e inaugurou --- lá onde cantavam sereias ---
o rito que transforma o herói em pai, o homem em deus.
Ó penélopes, eternas tecelãs!
Ó telêmacos, fura-diques do humano tempo!

Athena, pálida deusa, vem nessa manhã tropical
assentir em meu peito atlântico
o clamor de um guerreiro
que, sem família nem mesmo trágica sereia,
perde agora o sentido dos périplos
na misérrima aventura de sem-deuses ser.




PÉRIPLO

É noite e as vísceras ainda empurram a máquina de ser.
É noite e o ser insiste , víscero, no coexistir.
É noite e a noite sonha e os sonhos insistem em vir.
É noite e ser ou não ser redunda, é uma velha canção.

Mas, que é a vida senão velha e canção?

Eis aqui... o coração do ator e encena um velho ato...
São velhas palavras, velhas roupagens.
Não resolvemos, persona, o que fomos nem o que seremos.
Ser, não ser, talvez o nada...
Morrer, dormir, sonhar...
Morrer, óbvio ato.
Dormir, enquanto persistir.
Sonhar... périplo mar! périplo mar!




EVOCÃO DA LUZ

Serei feliz quando for luz.
Quando a luz for a mão
que laça a chuva de ouro
do Deus Sol! do Deus Sol!

Serei feliz quando for luz.
A última luz.
Imensa luz.
A luz só.

Serei feliz quando for luz.
Quando a luz for o não
No dia que começa com raios de sol.

Serei feliz quando for luz.
Quando a luz for na praça outra face do girassol.

País do amor

PAÍS DO AMOR


CANTIGA DE AMAR

Onde dormem estrelas
não apacienta meus sonhos
saber se é lá o porto prometido da paz

As nuvens passam com os dias:
insônias durante a noite e a impossibilidade de amar...
adiam paraísos, lá, além do teto nublado,
e aqui, onde o sol só se põe para os ricos

Os cabelos claros, os olhos escuros: pássaro futuro
fugindo sem parar

No correr dessa viagem
o animal simbólico em que nos transformamos
ruge feroz, no entanto é triste

Em todas as lutas pensa que vai tocar
a parede do perdão,
lá onde deve estar inscrito o teu nome junto com o verbo amar

Mas o sono não vem, irmão, nem o fim do sonho
O possível não nasce nos campos como o arroz
nem é grão com que se possa alimentar

Contudo, resta sempre a mesma palavra
boiando no claro-escuro desses dias
Solitário signo, persiste em um sentido e nome,
vaga sem forma, sem norma,
sem lugar

O nome desse périplo:
absurdo o verbo amar.




TODOS OS LUGARES DO MUNDO

Perpétua --- não a eternidade espiritual --- mas a física.
Aquela que em teu corpo se revela nas vísceras e na friez das mãos...

Perpetuidade de sombras --- cabes bem num dia sem sol,
onde os homens se movem absortos de sua felicidade, empurrados pela fumaça dos cigarros...

Perpétua esperança de uma alma branca, embora já roubada pelo escombro do mundo...
por todos os lugares do mundo...
E a hora em eterno avanço, acena com a noite --- não para o enlace desejado dos corpos ---
mas para a fuga da alma, que não pode ver o amanhã.

Perpétua --- berço de palavras esquecidas --- e como é terrivel relembrá-las na miserável
esteira em que o mortal se remexe, porque busca talvez um espírito sincero...

Perpetuidade de desejos...
a eterna conjunção --- glória dissoluta travestida de banquete olímpico ---
em teu seio, o centro entre o nome e a coisa,
o sangue do tempo nos cega em indistinta fome...

No entanto o sono há de vir, em preto --- preto perpétuo...
mas cantinuaremos a caminhar com o cigarro na mão, é certo, e nas quimeras dos sonhos havemos
de encontrar o braço do espírito
e aí sorriremos aliviados
por então recordar que a vida é demasiado breve
para não perpetuar-se nas tempestades da paixão.




O RISO

Quem ri é o tempo.
O puro riso de uma concepção profana.
Mãe de todas as luas,
Pai de todos os sóis,
Cratera de todos os homens.
O que não começou
senão quando eu comecei.
Mas que não finda
Mesmo quando findo.
Como este rosto de mulher
Percorrendo a minha memória,
Este pedaço de pão
secando através do dia,
no beijo risível de cada hora.

País da poesia

PAÍS DA POESIA




POÉTICA

Mais ensombreado e triste,
o impossível, o tenebroso,
o âmbito inflexível dos poemas:

rasgar os peitos das siriemas
roubar os cantos
rubrar encantos
petrificar as relvas
nelas sepultar poemas

E abandonar em meio a muitos
cadáveres
o poeta
roxo de prazer mórbido
engendrar em tantos ventres pútridos
os ovos da ausência de deus,

e subitamente ver
um verme ridículo nascer
o poeta então o devora
na verdade o poeta o adora
este filho bastardo de deus,
o âmbito inflexível dos poemas:

rasgar os peitos das siriemas
roubar os cantos
rubrar encantos
petrificar as relvas
nelas sepultar poemas.




RESPOSTA A AUGUSTO DOS ANJOS

Vês, Augusto,
não floresceram os ciprestes
desde o enterro da tua última quimera.

E aquela mão que afagava,
Augusto,
nem à pedra me recomendou.

Tenho fumado muitos cigarros
desde então...

O beijo, Augusto, é na verdade
a véspera de tudo.

O escarro, amigo, talvez seja o princípio
que sempre nos permeou.

Assim, Augusto, talvez seja justo
que os ciprestes não dêem flores
e que amor seja só mais uma palavra.


FIREHNEIT

Repito palavras, repito discursos.
Tudo foi de tal forma dito
que tornou impraticável a boa sabedoria da mimese.
E talvez um dia venham a atear fogo
à universidade chamada Biblioteca.

Imagina Balzac e Faulkner,
Virgílio e Dante, ardendo
numa fogueira primitiva
a restaurar a sacralidade do fogo.

País dos mortos

PAÍS DOS MORTOS


À ESPERA DE MECENAS

“tienes los sueños demasiado claros,
te hace falta una filosofia fuerte”.
Octavio Paz

“Lusum it Maecenas, dormitum ego Vergiliusque;
namque pila lippis inimicum et ludere crudis”.
Horácio



PEQUENO CANTO PARA EVOCAR SOPHIA

Para as honras da agonia
vi-te chegar em triste carruagem
como pés no outono sobre a folhagem
tão frágil e trágica Sophia.
Para as honras dessa triste pia
vi-te suspirar com pálida imagem
e buscar inquieta a última viagem
em lágrima pequena, breve e fria.
Por séculos o sacrifício da vontade
vi-te suspirar ainda nominando
com fina honra e verdade
fechando a era de Rolando
Ó Sophia muito além da Trindade
Ó luz que morre, corre iluminando.


INCIPIT

E veio num triste dia
o espírito de Sophia
e mandou-me abrir a porta
desta ópera morta
e ouviu-se então muitos risos
iguais a muitos paraísos
e também tantos raios
de muitos esquecidos maios
e deu-se assim a festa
que foi bela e funesta
e ali extraiu-se a bebida
doce da palavra dormida
e evocou-se todos os verbos
por todos os campos acerbos
onde foi deitada a semente
de um trigo clarividente
e assim fez-se o pão
da última distribuição
e esta foi a graça
que desatou a vil mordaça
e o morto fez-se vivo
neste plano recitativo
e assim pôde o poeta
exaurir o antipoeta
vivendo o mortal
que tal a morte e é real
e só assim pode um arado
arar verbo encarnado.

País dos bregas

PAÍS DOS BREGAS




POEMA PARA A IDADE DE CRISTO

Não desviarei os raios da roda-madrugada tão pouco alada.
Não desistirei do crispado desejo de ser amado,

desejo de amanhecer cru na relva petrificada:
a carne e a pedra, juntas, a suscitar incruento pó de estrelas auto-motivas,
depois da longa noite na livraria, onde um poeta autografava seu livro,
distribuindo sorrisos atados ao copo de whisky e frases emplumadas
ao som de cornetas supra-originais
e o vinho branco recendendo a óleo de soja
e os blasers de indisfarçada poeira, afilados na interminável
linha de mãos e apertos disputados...
A carne... a carne e o mar... o mar distante não desistirei,
embora os remos possam decepar-me a cabeça e o nojo da coragem...
embora os olhos possam secar ao sol de sal das recordações
e os peixes devorar a carne rija e orgulhosa do seu destino.

Não, não morrerei como Flebas, nem recordarão que fui forte e belo
como tu, nem virá o musgo selar os meus lábios e o diálogo
com minha amiga de sepulcro. Não, não serei arrastado às ruas pelos rebeldes
e baleado pelas costas, não me internarão no sanatório onde me encontrariam
agarrado ao meu par de sapatos e circundado por ratos.
Não poderão falar sequer da minha sexualidade tão banal, não
venderão cem mil exemplares da minha autobiografia,
nem desejará minha hipocrisia alimentar hipocrisias.

A madrugada que roda e os raios, o desejo de ser amado, desejo
de amanhecer na carne junto à pedra fuliginosa da calçada
e roçar os cabelos nas placas de concreto e os lábios nas manchas de óleo diesel
e ter os olhos estúpidos como os dos cães e o cheiro do lixo por recolher
e ser diminuto e desconhecido e quiçá lembrado num segundo fulminante
por uma mulher que já não coa o café da esperança nem traga
a fumaça da minha ansiedade...

Não. Não desviarei a rota da roda, não comoverei o desejo a fim de que se eleve,
não amaldiçoarei a carne nem o concreto, não refugarei o sentimento de viajar na salsugem longe do mar,
não distribuirei sorrisos como o feliz poeta da noite anterior
nem porei graça de gesto feminino na oferenda de minhas frases.
Não. Não poderás achar-me gracioso e não te farei concessões...

Mas te pago uma cerveja,
desde que tomes apenas a metade,
e não te falarei dos trinta e três anos que se passaram...
Lê... lê o poema, bebe a cerveja...
Continuarei ímpio, comum e cristão na cruz imaginária desse dia.


UM BURRO

escoiceia São Francisco
ainda assim vai para o céu
transformado em pégaso

não carrega Lady Godiva
não está no páreo do hipódromo
aparece nos sonhos das mulheres normais

pequeno demais para Aníbal, o Cartaginês,
não foi lembrado por Ricardo III ao fim do último ato
carregou Cristo e Lampião




SENTIMENTAL VIAJOR

Um viajor lembra o que passou,
lembra por que passou.
Por isso pode agora chegar-se ao espelho e fitar
sem espanto, sem dor, as rugas em torno dos olhos ---
pode fechá-los para ouvir o coração exausto na paz.
E passar de paz pelos homens, viajeiros de calçadas,
tomar o coletivo de um trópico opulento de espera,
deixar o rosto ficar de frente para todos os rostos
da tribo e ser da tribo,
mesmo como prisioneiro de uma colônia
(dádiva de um tempo em que se vai a lugar nenhum).
Espaços e tempos vertidos a todos os espaços e tempos
e estranhamente a colônia brilha e ferve como se fora outro lugar,
e no entanto ela é aqui, centro de nossos sonhos,
centro das nossas ilusões... e até mesmo do nosso amor...
prisioneiro amor.
Sentimental viajor, senta à varanda de seus antepassados
como no levadiço de antiga nau,
procurando palavras e sentimentos
entre girassóis e folhas de bananeira,
e balança a cadeira que é de balanço
e pensa com os pensamentos que são palavras:
e tudo o que pode dizer é um Boa-Tarde aos homens
que passam carregados pelo tempo viajante,
enquanto uma aeronave cruza o céu avermelhado do sol que morre.
Fita-o silencioso, até que esvaneça no sem-fim.
Sabe que o poder não o acompanha,
já sabe onde reside a dor e prefere desistir a arrancar algo pela força,
mas sorri quando vê o girassol todo voltado para o Oeste
e a bananeira em sombras, sempre humilde e frondosa,
como uma deusa que nasce da terra e na terra há de perecer para iluminar.



ÚLTIMA TRADUÇÃO DE HOMERO

Doce é o lar,
Quando surge aos olhos dos peregrinos,
a quem, sobre a terra Satã desfigurou
a bela e altiva tez, sob os golpes do tempo
e dos sonhos do poder.

FIM DO PÉRIPLO

Carta

CARTA

Entendo que a metáfora é a totalidade do poema e que seu ser é essencialmente feminino: a poesia.

A relação do poema com a poesia é a mesma que se dá no arquétipo do par de opostos: feminino/masculino. Porém, no contexto do poema, por se tratar de um fazer humano, nem sempre a relação é complementar. No entanto, é natural que os opostos sempre se procurem e, às vezes, não se encontrem. O procurar é uma das mais intensas necessidades humanas. Neste sentido, um poema é, talvez, a mimese que mais se aproxima dos conteúdos da psique do homem.

Na grande metáfora que um poema é, cabem todos os cantares e, em essência, ele não reconhece relações de perda ou ganho: seu poder é instável ou inexistente, porque é o mais coletivo dos organismos verbais superlativos.

Inspiração é um abismo. Nele, liberdade e conhecimento correm fundo. O abismo é de toda a tribo. O ofício do poeta é descer nesse abismo: um poeta é todos os homens da sua tribo.

Deus, Amor e Morte: penso que ainda são as forças que movem a vida. O primeiro por dar um sentido ético e resistência anímica; o segundo, porque possibilita o sonho e o ideal; o terceiro, porque é a cessação de todas as ilusões.

Sei de coração todas estas idéias. Contudo, entre a certeza de um Saber e a incerteza na experiência do Fazer, fico com o último. Porque em vida nada substitui a ação. E mesmo em se tratando de palavras é preciso pôr a mão na massa e, frequentemente, também na merda. Porque para a poesia toda palavra é ato e verdade, é a própria luz do ser e o seu símbolo.

João José de Melo Franco